sexta-feira, outubro 29, 2004

Ponta Delgada – Vandalismo Cultural ou Desenvolvimento? - XX

Chegamos assim ao coração da cidade. O Largo da Matriz é um espaço modesto, mais uma rua larga do que um largo, onde se situa a seiscentista Igreja da Matriz, construída no local da antiga Ermida de S. Sebastião do séc. XV, pelo voto dos habitantes da então vila, pelo fim da epidemia de peste que grassou de 1523 a 1531.
A igreja começou a construir-se em 1531 (1 ).

Ao norte da primitiva ermida havia uma fonte que depois da construção da Igreja ficou dentro da nave :“Um poço de água salobra que estava no adro da igreja pequena, que se fez junto da porta travessa da banda do norte, de que dantes, quando não tinham fonte, bebiam os moradores da Ponta Delgada, fazendo-se depois maior a igreja, como agora está, ficou dentro nela; de cuja água se servem para a regarem no Verão e para outras necessidades” (2 ) .
A primitiva torre sineira ficava a norte ao lado da capela-mór : " alta e graciosa torre do relógio, junto da capela-mor, da banda do norte, e outra fortíssima, ainda não acabada, para os sinos, pegada com a fronteira da porta principal” (3 ) estando ainda começada a do lado sul. A torre actual já do séc. XVII (1623), foi completada pela Câmara após ameaças de excomunhão por parte do Deão da Sé, feitas em 1601(4).

Nas casas fronteiras à Igreja foi improvisado o primeiro edifício da Câmara. Rodrigo Rodrigues baseado em escrituras de aforamento de casas na Rua da Cadeia, conclui: "Estas indicações, conjugadas com as informações fructuosianas, levam-nos a induzir, com algumas probabilidades de acerto, que a Câmara Velha era situada-ou no local onde hoje está o quarteirão de edifícios comerciais, mesmo em frente da Igreja Matriz, entre o lado norte da que presentemente se chama Praça da República e a actual rua do Melo, que então seria aquela rua da cadeia para onde deitavam as casas aforadas em 1605 e a própria cadeia dos presos (que, como vimos, era uma dependência dessa Câmara Velha, talvez do seu rés-do­-chão) - ou no outro quarteirão detrás, para poente, com a Praça prolongada para oriente, fronteando a Matriz e deitando para o norte a sua cadeia, para a mesma rua da Cadeia, depois e ainda hoje rua do Melo " ( 5).

A cadeia ficava no rés-do-chão, como era habitual nos edifícios municipais da época e virada para a Rua do Melo, então conhecida por Rua da Cadeia Velha – para a distinguir posteriormente da Rua da Cadeia quando a Câmara mudou para a localização actual – o que originou numerosas queixas dos autarcas pela imundície e maus cheiros.
O Capitão Inácio de Melo morreu, em Ponta Delgada, no dia 6 de Junho de 1618. Era Irmão da Misericórdia e foi Vereador de Ponta Delgada em 1613. Mereceu a distinção de Cavaleiro da Ordem de Cristo.
Conta Frutuoso, nas `Saudades da Terra', que Inácio de Melo participou, em 1585, numa "cruel batalha que houve junto do porto da cidade de Ponta Delgada, entre uma nau hespanhola e duas ingresas de cossairos". "Pelo que nesta batalha fez Inácio de Melo, filho de Diogo de Melo, o fez Sua Majestade capitão do número e cavaleiro fidalgo, e lhe fez mercê de quatrocentos cruzados para ajuda de custo".

A Rua do Melo, no séc. XVII, também se chamou “Rua de Cristóvão Paim da Câmara”.
Cristóvão Paim da Câmara, Capitão, natural da Vila da Praia, Terceira. Casou duas vezes, a primeira com Catarina Favela da Costa, filha de João de Arruda da Costa (R.R., Genealogias de S.Miguel e Santa Maria Cap.° 30 , § único, Nº 2) e de Maria Mendes Pereira, (Ibidem, Cap.° 5, § 1, N.º 2). Casou 2ª vez com Isabel da Fonseca, a 5 Janeiro 1610, na MPD, filha do licenciado Luís Leite da Fonseca e de Simoa de Resende.

Frutuoso, ao longo da sua crónica, fala-nos de resto na presença de dois pelourinhos, de que não restam vestígios, o primeiro, inicial­mente construído à pressa, como símbolo da justiça, "defronte da cadeia dos presos ", e o segundo, em período que não indica, "defronte do cais " - e na proximidade das futuras Portas da Cidade.( 6)

A colocação do relógio no eirado da torre, feita em 1895 por imposição testamentária de António Joaquim Nunes da Silva, foi mais uma das várias agressões feitas ao exterior ao edifício, para além das barbaridades cometidas no seu interior. O relógio do princípio do séc. XIX colocado na face nascente da torre foi retirado e vendido à Câmara da Povoação.

O chamado “arranjo” do adro da Igreja Matriz data de 1901, feito como preparação para a visita régia, foi a pura e simples destruição do antigo adro e das pitorescas lojas que se situavam por baixo, e a sua substituição por uma simples e insípida escadaria. O que poderia ser hoje um aproveitamento turístico das pequena lojas de barbeiro da parte sul do adro, com lojas de artesanato e outras curiosidades, ficou assim irremediavelmente destruído.


Vista do largo da Matriz no séc. XIX, vendo-se os edifícios ainda existentes com ligeiras modificações. A entrada para o Clube Micaelense, o que é o Café Central, a Rua do Melo (antiga Rua da Cadeia Velha) e à esquerda os edifícios, ainda existentes, que se situam no local da primitiva Câmara Municipal



Casamento “de estadão”nos anos 70-80 do séc. XIX.
De notar que o aspecto é semelhante ao de hoje
.


Igreja Matriz no séc. XIX antes da desastrosa destruição do adro retirando as pitorescas lojas (1901) e a colocação do inestético relógio (1895)



Aspecto actual da Igreja da Matriz já depois do arranjo do adro e colocação do inestético relógio no eirado da torre que desequilibra a volumetria do edifício


1 Nestor de Sousa, A ARQUITECTURA RELIGIOSA DE PONTA DELGADA NOS SÉCULOS XVI A XVIII, Universidade dos Açores Ponta Delgada 1986.
2 Gaspar Frutuoso, “Saudades da Terra”, Vol. 4º , Cap.XLIII, pág.
3 Gaspar Frutuoso, “Saudades da Terra”, Vol. 4º , Cap.XLIII, pág.
4 Manuel Ferreira, Ponta Delgada – História e o Armorial, CMPD 1992
5 Rodrigo Rodrigues, Revista “Insulana”, Vol. II, pág.386- 1946
6 Manuel Ferreira, Ponta Delgada – História e o Armorial, CMPD 1992

Carlos F. Afonso

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