segunda-feira, setembro 27, 2004

Ponta Delgada – Vandalismo Cultural ou Desenvolvimento? - I

Ao propor-me dar uma opinião sobre o que tem sido feito à cidade onde nasci e onde gosto de viver, faço-o despretensiosamente, mais por imperativos de ordem sentimental e de revolta, do que baseado em conhecimentos históricos ou artísticos que não possuo e que admito os meus conterrâneos possam, com razão, discordar.
O longo período de afastamento, a que fui obrigado por motivos profissionais, fez em mim crescer o sentimento de “açorianidade” que quase todo o emigrante açoriano sente, ao afastar-se a sua terra.
"A Açorianidade é a alma que se transporta quando se emigra, como também aquilo que de cada um de nós se espera quando nós vivemos fora”. (1).
Nós, açorianos, somos os portugueses de quatrocentos, moldados pelo isolamento das ilhas, pelos sismos e pelos vulcões… Os que para cá vieram em quatrocentos, foram gente rude e aventureira e meia dúzia de filhos segundos da pequena nobreza continental arruinada.
Uma das características do carácter do micaelense, é a ausência do snobismo tão típico do continental e de forma mais exuberante do alfacinha, sempre disposto a fazer parecer o que não é, e a exibir o que não tem. A rudeza dos primeiros tempos do povoamento moldou-nos o carácter e o isolamento fez permanecer durante séculos termos linguísticos, hábitos e tradições já há muito desaparecidas no continente e que, progressiva e rapidamente, se vão também apagando nas ilhas. Se na mesma ilha se encontram pronuncias, hábitos e tradições diferentes, originados provavelmente pelas diferentes origens dos primeiros povoadores que dizer entre as diferentes ilhas.
Nemésio, um observador arguto e que tão bem conhecia o carácter açoriano definiu-o de forma lapidar. Assim, considera o micaelense (o mais trabalhador, o mais introvertido e talvez mais rude nos tipos rurais), o terceirense (bem menos trabalhador, mais festeiro e convivente, com traços de certa manha rural), que agrupa com um tipo mais genérico do açoriano das "ilhas de baixo", e o picaroto, que é uma subdivisão do grupo anterior, mas que lhe oferece traços muito distintivos, a ponto de o considerar a "nata do insulano" (homens do mar, homens de palavra, dando conta da vida com frontalidade e brio).(2)
Se até ao séc. XIX as elites e o poder foram fundamentalmente de origem nobre, terratenente e rica, mas, na sua maioria, pouco letrada e culta, com o advento do liberalismo emergiu uma classe de mercadores, também ricos, mas ansiosos pela nobilitação, para depois, com a Républica, ser exercida por uma classe pobre, mais letrada, mas ambicionando, já não a nobilitação, mas sim a justa ascensão social e um enriquecimento rápido, por vezes por meios pouco claros, para não dizer claramente ilícitos. Todos, ou quase todos, mostraram por igual um total desrespeito, quer pela história quer pela tradição artística local, submetendo-nos – por ignorância ou insensibilidade – aos seus interesses particulares, hoje muito ligados à “cultura do betão”. Honrosas excepções houve, como sempre…
O meu objectivo será mostrar, baseado mais em fotografias do que em conhecimentos históricos que, como já disse não possuo, a destruição e descaracterização que se tem feito da cidade de Ponta Delgada, em nome daquilo que alguns chamam, a meu ver de forma caricata, “Desenvolvimento”.
Se a alteração da toponímia da cidade, já aqui referida, resulta de uma mera estupidez facilmente remediável, a destruição do seu património arquitectónico, já de si pobre, é um crime de lesa-cultura irremediável.

1. António Machado Pires, in “O HOMEM AÇORIANO E A AÇORIANIDADE”, IV Colóquio Internacional de História das Ilhas .Canárias 1995
2. V. Nemésio "O Açoriano e os Açores" em Sob os Signos de Agora, Coimbra, 1932.

Carlos F. Afonso


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