sexta-feira, setembro 03, 2004

Férias (VI) - Santa Maria

Este ano nas férias aproveitámos para visitar outra ilha, a de Santa Maria.
Um dia magnífico, um passeio fantástico e uma data inesquecível que sempre será lembrada.
Para além de um excelente almoço na Maia - e mais uma vez obrigada ao Nuno, pela recomendação e marcação - onde matei saudades dos cavacos, e de trepar muros para ver o sitío onde viveram antepassados, deliciei-me com a vista sobre a Baia de São Lourenço e com a cor da água.
E como nunca irei a outro planeta, pelo menos fui à Faneca onde me senti marciana.

Ficam aqui uma história de Santa Maria e as fotografias dessas paragens.
Até agora, quase todas as fotos que aqui viram foram da autoria do meu amigo João que muito contribui para colorir este blogue de recordações nos últimos dias. Obrigada a ele.
As fotos de hoje são da minha autoria, mas quem ajudou na qualidade foi o tempo e a máquina.


Santa Maria foi, com grande probabilidade, o primeiro lugar ocupado pelos colonos recém-chegados. Havia para isso duas razões: a de ser a mais meridional de todas as ilhas; e a de ser aquela em que as manifestações de vulcanismo estavam completamente extintas. Não foi só a distância marítima que até aos meados do século XV fechou aos europeus a penetração dos Açores; foi também o terror do fogo, terror que pode estar relacionado com as lendas do mar tenebroso. Há noticias de erupções nas ilhas de São Miguel, Pico, São Jorge, Faial, Terceira e de numerosas erupções submarinas. Gaspar Frutuoso conta que à noite os cimos dos montes se viam em brasa; os vulcões submarinos faziam ferver o mar. O vulcanismo não era só um factor de terror, mas também uma dificuldade ao aproveitamento dos solos; no Pico ainda hoje se chama mistérios aos revestimentos de lava e cinza que, inexplicavelmente para os colonos, apareciam a recobrir a terra e a tornavam estéril. Santa Maria é, como todas as demais ilhas açorianas, de origem vulcânica, mas desde há muitos séculos o fogo se apagara quando os Portugueses lá desembarcaram.
Santa Maria está ligada com a epopeia de Colombo. Foi a primeira terra europeia em que tocou quando regressava da viagem famosa que o levou ao Novo Mundo.
Bastante confusa e misteriosa é essa passagem de Colombo pelos Açores, como misterioso é tudo quanto se refere ao grande navegador. Chegou a Portugal do mesmo modo que Ulisses à ilha Scheria: atirado pelas ondas, agarrado a um remo, deu à costa numa praia do Sul, não sabemos ao certo qual, porque Las Casas só diz que o naufrágio se deu entre Lisboa e o cabo de São Vicente. Nessa altura o descobridor era corsário, e andava embarcado numa esquadra de flibusteiros que saqueava sem caridade os navios que apanhava no mar. Tinham saído quatro grandes galés venezianas do porto de Lisboa e os corsários caíram sobre elas, como aves de rapina, mas os mercadores defenderam--se e Colombo teve de se atirar ao mar, do navio em chamas. Ulisses encontrou Nausica na praia, e assim entrou no palácio do rei. Colombo encontrou em Lisboa Filipa Perestrelo, filha do navegador Bartolomeu Perestrelo, que então já tinha morrido. Foi a viúva do povoador de Porto Santo, que, quando viu que o genro era dado a cousas dos mares, lhe deu 'instrumentos e escrituras e pinturas convenientes à navegação, com cuja vista e leitura ele muito se alegrou'. Palavras do padre Las Casas que conhecia de perto o assunto.
O certo é que numa sexta-feira, 15 de Fevereiro de 1593, ao fim de muitos dias de desespero perdidos na fúria da tempestade, avistaram terra pela proa, na parte de les-nordeste. Uns diziam que era a ilha da Madeira, outros a Roca de Sintra. Não sabiam onde estavam, e com a cerração voltaram a perder de vista a ilha. Todo o sábado andaram aos bordos, mas não viram senão bruma; ao rezar a Salvé, a oração da noite, avistaram fogos em terra; estavam portanto perigosamente perto, e o navio passou a noite a bariaventear, para não se perder outra vez a ilha e não se despedaçar contra os rochedos. No domingo continuou a luta contra a ilha fantasma; o almirante «no pudo recognoscer que isla fuese . Só na segunda, 18, se aproximou e mandou o batei a terra; os moradores disseram-lhe onde estava, ensinaram-lhe onde havia um ancoradouro para a caravela e «mostraram muita alegria e davam graças a Deus pelos descobrimentos do almirante». E Las Casas quem continua a falar. Mas acrescenta ~pero, en la verdad, todo era fingido>.
Começa aqui o relato de uma aventura que a literatura colombiana celebrizou e em que o papel de vilão fica para o capitão de Santa Maria. Nessa mesma segunda-feira, ao pôr do Sol, três açorianos apareceram na praia a fazer sinais de que queriam ir a bordo. Colombo mandou-lhes um barco, e eles vieram com uma bela merenda, água fresca e vinho velho, pão ainda a cheirar à carqueja do forno, galinha assada. E um recado: quem governava a ilha, na ausência do donatário, era João de Castanheira, que mandava saudações, não vinha porque era já noite mas viria no dia seguinte apresentar cumprimentos. (Tudo isto o conta Las Casas e o repetem os colombistas modernos. Não acredito que os açorianos precisassem de pedir um barco para ir a bordo, nem que mandassem galinha assada a um navio que tudo indicava ser dos piratas que por ali pairavam, nem que saíssem da terra ao anoitecer para ficarem numa caravela desconhecida, cujos homens falavam de fantásticas aventuras, como era costume de todos os malfeitores.)
O almirante Colombo sentou-se na câmara a saborear a prenda que lhe mandavam, fez muita honra aos mensageiros, fez dar-lhes camas para dormirem (quer isto dizer que os não deixou voltar a terra), e diz aqui só teve uma preocupação: cumprir o voto que fizera dias antes, quando se vira perdido de todo na solidã4 do mar: ir descalço e em camisa até à primeira igreja em que pudessem rezar a Santa Maria. E na manhã seguinte, terça-feira 19, dia de Camestolendas para o espanhóis, mandou metade da tripulação, com os três portugueses, a uma igrejinha que lhe disseram haver ali à beira da água. Aos portugueses pediu ele que 1h fossem achar um clérigo para dizer missa na ermida Ele guardou-se para o segundo turno da devoção.
Assim se fez. Mas os desembarcados não voltaram. Passava-se o tempo, a outra metade da tripulação estava ansiosa por desembarcar também, e nada de notícias. Já perto do meio-dia Colombo mandou levantar âncora e penetrar no pequeno porto junto do qual estava a ermida. E o que avistou da amurada foi uma cena odiosa: os desembarcados estavam todo presos. O capitão português meteu-se no barco e veio até perto da caravela pedir a Colombo que desembarcasse a outra metade da tripulação, certamente para o prender também.
A inverosimilhança de tudo isto tem passado indemne pelo crivo da história, e a única explicação. para esta situação, que extravasa das barreiras do bom senso, é o temor reverencial perante o mito colombino E bem claro que se o navio pudesse navegar dentro da angra da qual se via a igreja não teria fundeado no exterior, e também é pura fantasia que do mar Colombo pudesse ver o que se passava na ermida. Mas La Casas apenas repete o que Colombo contava, e Colombo foi homem cuja fantasia não tinha qualquer limite. Diz que, depois de ter discutido com o capitão português, voltou a sair para o antigo ancoradouro; aí a força do mar partiu-lhe os cabos e na quarta-feira, 20 de Fevereiro, a Pinta andava outra vez à mercê dos temporais, à procura da ilha de São Miguel, a doze éguas dali. Todo o dia navegou sem a avistar; na quinta-feira resolveu voltar a Santa Maria «para ver se podia cobrar a sua gente, a barca, as âncoras e as amarras que ali tinha deixado». Suponho que esta frase é uma fenda através da qual se pode entender toda verdade. O que atirou Colombo para o mar não foi nem a prisão de meia tripulação nem o conflito com o capitão português: foi a força do vento que lhe partiu as amarras. A invenção do episódio tem um objectivo: explicar este percalço marítimo e acentuar o heroísmo do descobrimento inventando uma oposição do rei de Portuga1 que, na realidade, não existia senão na má consciência de Colombo.
O prosseguimento do relato de Las Casas confirma-o largamente. Quando a caravela se aproximou de novo da ilha havia gente no alto das falésias a ver se a avistava; isto é, esperava-se que o navio voltasse. Um desses vigias fez-lhe sinal para que esperasse, sem seguir viagem, e Colombo ficou à espera. Não tardou muito que lhe viessem trazer a sua barca; vinham a bordo cinco marinheiros, dois clérigos e um escrivão, que lhe pediram que mostrasse os documentos que comprovassem o que afirmava. Exibiu as credenciais que os Reis Católicos lhe haviam confiado. Os portugueses deram-se por satisfeitos: Colombo provava que era capitão de um navio de uma nação amiga, não um salteador dos mares. E evidente que, em dois dias, o capitão português não podia ter recebido ordens de Portugal que o fizessem passar da posição de inimigo de aliado. Também é claro que tudo estava a postos ia ilha para ajudar o navio quando ele voltou. As coroas de Portugal e Castela tinham as melhores relações e não havia qualquer motivo para que um navio ao serviço do rei de Castela fosse hostilizado. A parte da tripulação que havia desembarcado (Colombo diz que para cumprir a promessa, mas o mais provável que fosse só para ver a terra) pôde então voltar à Pinta, e no domingo, 24 de Fevereiro, o descobridor da América, depois de se reabastecer fez rumo à Europa. Mas a força do vento tornou a confundir-lhe os caminhos; em vez de ir direito a Huelva, meteu-se pelo Tejo dentro e fundeou no Restelo. Surpreendente ancoradouro para quem andava a fugir aos navios do rei de Portugal! Daí mandou pedir licença para ancorar diante de Lisboa, porque o Restelo era lugar solitário; era uma maneira de fazer saber em Lisboa do seu regresso e do seu triunfo planetário. D. João II estava então em Vale de Paraíso, pequeno lugar junto de Aveiras de Cima, e ali recebeu o navegador com todas as honras, e ofereceu trajos de bom pano encarnado a toda a tripulação. E curioso que Colombo nunca mais e tenha lembrado da tal promessa solene a Santa Maria, apesar de necessariamente avistar do seu barco a ermidinha henriquina de Santa Maria de Belém...
Desse pecado da cilada a Colombo está pois inocente a ilha de Santa Maria. Pelo contrário, foi lá que recebeu os primeiros acenos de boas vindas e as primeiras alvíssaras do seu grande feito: o saboroso frango que João Castanheira lhe mandou. E para o silêncio dos antigos historiadores açorianos - Frutuoso, Padre António Cordeiro, Frei Agostinho de Montalverne —, que tanto tem intrigado os historiadores modernos, há uma explicação bem simples: o incidente só aconteceu na imaginação do navegador. Por isso nenhuma fonte da época o refere, nenhum protesto foi formulado, nenhum vestígio escrito ficou.


O Tempo e a Alma, José Hermano Saraiva












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